segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O Pensamento é Livre


O Pensamento é Livre 

De há muito que tenho em sentido vir falar-te e trazer o meu quinhão para a obra singular em que andas empenhado. 

Circunstâncias várias, porém, têm impedido que o tenha podido fazer. 
 
Chegou a oportunidade; e, visto que chegou, vou aproveitá-la.

Não há grande mérito em afirmarmos daqui a existência da vida, que aí nos comprazemos negar. 

Nem mérito nem necessidade.

É um fato natural. 

Seria contra-senso esperar o contrário. 

Está afirmada pela nossa própria existência. 

Ou ela não existiria e nós não viríamos, ou se nós viemos é porque ela existe.

Não perco, pois, tempo a querer provar o que a minha presença demonstra. 

Seria cometer um pleonasmo, e os pleonasmos estão fora dos meus hábitos.

Sendo assim, como é, resta-nos só uma coisa a apreciar. 
 
É esta:-
 - Porque será que o homem põe tanta fereza em sustentar a sua não existência além da morte?

Por mim julgarei.

Não deixa de ser incontroversa verdade que a religião constitui um freio.

Ora, como todas as religiões, mais ou menos alumiadas pela luz das civilizações, de que são produto e reflexo, se baseiam, também mais ou menos, na existência de Deus e da alma, seja qual for a forma por que pretendam justificar estas duas existências, segue-se que não há religião que não constitua um poderoso elemento para conduzir o animal humano a certo e determinado fim.

Para o conduzir ou pretender conduzi-lo, o que não é bem o mesmo.

Se é certo que, de fato, as religiões são um modo seguro de arrebanhar e domesticar homens, num propósito salutar de os corrigir e de os amoldar a princípios de filosofia transcendental, especulativamente perfeita ou tendente à perfeição, não é menos certo que não há animal mais indomesticável que o homem, mormente quando se lhe mete na cabeça que é alguma coisa de superior.

Apoiado nesta falaz superioridade, se sente o freio moral a pretender guiá-lo, para o fazer entrar na uniformidade passiva de um grande rebanho, sujeito, no redil da obediência, a um princípio único e a determinações restritivas, reage contra esse freio. 

E como ele é peia de que pelo seu próprio esforço pode libertar-se, conclui-se pelo ato, excessivamente cômodo, de o suprimir.

Como é mais fácil e mais tranqüilo viver sem pressões, de que ceder e amoldar-se a elas, ainda que no fundo da sua consciência as reconheça úteis e profícuas, tem o homem procurado, desde sempre, destruir tudo quanto sirva de obstáculos ao livre exercício da sua vontade.

Convenho em que de muito lhe tem valido, para o seu aperfeiçoamento moral, espiritual e até mesmo material, esse eterno gérmen de revolta, ingênito em todo cérebro humano; essa eterna aspiração de liberdade, que acalenta os sonhos do homem e lhe move e rege o pensamento; mas também não é menos certo que muitas vezes, precipitado no caminho das reivindicações, quer materiais, quer intelectuais, corre doido, cego, como cavalo fogoso sem rédea nem governo.

Passa a meta, ultrapassa o limite razoável onde era justo que parasse, e arremessa-se por despenhadeiros, indo encontrar o estropiamento ou a morte, onde imaginaria achar a liberdade e a vida.

 As religiões, como coisas incompreensíveis e maravilhosas ao vulgo, feitas de princípios eternos e assentes em bases inamovíveis, constituem um estorvo ao libérrimo exercício do pensamento humano. 

Limitam-lhe a zona onde ele pode desenvolver-se, e os assuntos que podem ser submetidos ao seu justo exame.

Deixam entrever horizontes infinitos, que constituem o desespero do homem por não os poder alcançar e explicar.

O revoltado, como os não pode atingir, relega-os, suprime-os da sua vida.

Suprime-os por efeito da sua vontade, como por efeito da sua vontade cerra os olhos para poder negar a luz. 

Mas no fim de todo o seu esforço, nem a luz deixou de existir, nem os princípios que tentou suprimir desapareceram.

E, na maioria, se não na generalidade dos casos, nem mesmo da sua própria consciência conseguiu a supressão.

 Felizes os modestos e os conformados, que norteiam o seu viver dentro do âmbito que aquele limite lhes proporciona!

Se dentro dele guiam a sua vida pelo farol da justiça e pela bússola da bondade, serão aí iluminados pelo sol radiante da esperança, acariciados pelo brando calor da tranqüilidade de espírito, e ao aportarem, no fim da viagem, ao porto desconhecido da morte, encontrarão a felicidade.

Os outros, os ambiciosos da liberdade plena, os insubmissos ao respeito, os que farão vogar o seu batel ao sabor desconcertado do seu pensamento sem governo, não raro darão com ele sobre os recifes do desespero, e em vez do apetecível descanso final, virão ao encontro de mágoas e dores, que, pela sua intensidade e pelo pavor do inesperado, lhes darão a sensação tétrica de uma eternidade de horror.

Não venho fazer confissões do que se passou comigo. 

Basta que enuncie o fato para cada um tirar dele as ilações que lhe aprouver.

Já não é pequeno favor falarmos-lhes daqui, prevenindo-os dos perigos, se são incautos; aconselhando-os se são contumazes ou inexperientes; alumiando-os, se lhes falta luz; ou guiando-os se forem cegos de entendimento.

Isso faço também.

Para que alguém tire proveito do que lhe digo, não reconheço vantagem em confidenciar a toda a gente o que comigo se passou.

 Nunca tive o hábito de aliviar-me, para carregar os outros. 

Tirarmos de nós segredos e entregá-los àqueles que nada têm com eles, é alijarmos responsabilidades e deveres para quem dessas responsabilidades e desses deveres não têm que fazer-se depositários.

Se nós não sabemos ou não queremos conservar e guardar o que nos pertence, não temos direito de esperar que os outros façam melhor uso daquilo em que não têm nenhum interesse.

 Sempre pensei e procedi assim.

 No círculo limitado em que vivi, chamavam-me taciturno e misantropo.

Não era. 

Era prudente e metódico. 

Adotava e seguia o processo que me parecia mais consentâneo com o resultado dos meus estudos sobre os homens e sobre as coisas; e seguindo agora o processo igual àquele com que me dei aí otimamente, suponho usar de um benefício conquistado pelo meu trabalho honesto.

Procurei dar sempre aos outros a impressão nítida da síntese a que o meu espírito chegava, na resultante da elaboração metódica e regular dos meus raciocínios, naquilo sobre que fazia incidir o meu estudo. 

Podia errar, e muitas vezes errei; mas procurava destacar um cunho de honestidade e de retidão, o meu modo de ver e de apreciar.

Diligenciei pôr em tudo uma réstia de luz, que aclarasse o que de natureza própria não era muito claro; e àquilo que não carecia de muita luz para iluminar-lhe o vulto, procurei pô-lo de modo que melhor pudesse ser visto e julgado.

Claro é que muitas vezes me enganei; mas se eu, que buscava ser probo e consciencioso no meu trabalho, me enganei, o que terá sucedido a tantos que, por imprevidência, descuido ou maldade, só têm buscado confundir tudo, escurecer tudo. 

Apresentava as conclusões a que chegava. 

Era esse o meu fim.

Mostrar os meios, os argumentos, as induções e deduções, o longo trabalho paciente e extenuante a que me entregava para chegar a essas conclusões, era supérfluo; e detestei sempre o supérfluo.

Daqui sigo o mesmo processo.

Cheguei rapidamente, logicamente, à conclusão de que o homem faz mal em entregar-se livremente, e de maneira desordenada, a saborear a ambrosia da ampla liberdade de pensamento, sem peias nem restrições. Isto digo para aí.

Deve meditar-se que tudo tem um limite; e nada há que tenha limite mais próximo do que o pensamento humano, que se crer ser livre como o ar. 

Ora em verdade o ar é livre; mas a coisa mais flexível e diáfana estorva e impede a sua passagem. 
 
Assim, o pensamento é livre, mas a cada momento, o que proclama a sua liberdade, tem de reconhecer que as mais ligeiras reflexões tolhem a sua expansão.

A razão, que é o equilíbrio das faculdades intelectuais coarta-lhe a cada momento os vôos. 

É como uma águia presa por uma corrente a um rochedo.

O pensamento pode mergulhar-se no infinito. 

Tem essa possibilidade; mas é como se mergulharmos a vista na escuridão. 

Olhamos mas não vimos nada. 

Ele sobe, profunda, tenta, mas só consegue saber que cada vez ignora mais.

Nesse infinito vai reconhecer que o seu limite está adstrito ao pouco em que se constitui o seu conhecimento.

Espraia-se em conjecturas, alonga-se em suposições, enriquece-se em hipóteses; mas depois de esforços sem nome, de tentativas sem conto, chega à triste realidade de que a verdade conhecida é uma poalha, insignificante conquista do seu trabalho.

 A sua ampla liberdade, liquida, por fim, no reconhecimento de que é uma desconsoladora ilusão. 

O pensamento ilimitado é como a vista na escuridão:-
- Esbarra nas trevas.

Só pode ser livre nos mentecaptos, nos irrefletidos, nos irresponsáveis.

Quanto mais poderoso e mais belo é o cérebro em que ele se elabora, maior é a responsabilidade da sua manifestação, e mais avultadas são as dificuldades que ele tem a vencer para ser livre.

Deve dar muita volta dentro da caixa craniana, que lhe serve de receptáculo elaborante, de retorta purificadora, antes de conquistar o direito à sua expansibilidade fora do ser que o produziu. 

Deve ser como a língua, que deve dar muitas voltas na boca antes de proferir coisas que desconheça.

Se a prudência aconselha tão úteis precauções, como há de dar-se-lhe a alforria absoluta?

     
É verdade que se estabeleceu que a liberdade de pensamento seja só para a libérrima apreciação da idéia de Deus. 

Está convencionado que os livres pensadores sejam só negativistas.

Na negação é que reside a liberdade.

Ora, a negação, em filosofia, é a suprema manifestação do inexistente, como nas ciências concretas é a suprema manifestação da ignorância.

Sendo a negação - o nada - a liberdade que essa negação representa eqüivale-se a nada também.

Será desconhecimento, será preconceito, será orgulho: tudo coisas mesquinhas, de significação restrita e âmbito acanhado, e nunca a sintetização dessa amplidão infinita, sem raia e sem obstáculos, que evoca ao nosso espírito a idéia de pensamento livre.

Em tudo que se não relacione com a idéia de Deus, não há livres pensadores. 

Até nesses, a razão humana força ao reconhecimento de dificuldades, muitas vezes insuperáveis, ao livre exercício do pensamento. 

Tem sempre que amoldar-se, modificar-se, segundo os assuntos sobre que tem de incidir.

Só os irresponsáveis podem desconhecer as regras que a necessidade impõe aos homens de são juízo.

 Não deixa de ser verdade, porém, que a irresponsabilidade nem sempre é um triste direito só dos idiotas, é também, muitas vezes, uma conquista ou um apanágio dos maus ou dos inconseqüentes.

Se não pretendem usufruí-la em todos os atos vulgares da vida real e física, como a usufruem nos domínios inatingíveis da espiritualidade, é porque a sociedade organizou a sua defesa contra essa espécie de insubmissos, de eternos revoltados, de livres exploradores da vida, e corrige-os, e tolhe-lhes o amplo exercício de tão estranhas aspirações, ergastulando-os, e seqüestrando-os ao seu convívio; limitando-lhes, assim, de um modo para eles muito lamentável, a vastidão sonhada do seu campo de ação.

Ora, Deus não é como a sociedade. 

Não se defende. 

Deixa libérrima a ação ao homem para guiar aí a sua vida como lhe aprouver.

 No amplíssimo uso dessa liberdade amplíssima, vingam-se contra Ele, dos obstáculos que a sociedade lhes opõe; e conquistam, com grande entono de ousadia, o direito de se proclamarem livres.

São livres contra Deus, como o são contra os espaços siderais; livres, mas presos à pequenez mesquinha da sua carcaça material; sem que, de fato, se desloquem da Terra onde estão agrilhoados.

 Fazem mal os que assim procedem.

Esse inconsciente direito, essa grandiosa conquista da rebelião ignorante, é um mal que cedo reconhecerão, e de que amargamente pagarão o gozo.

Atiram, de fato, fora o freio da idéia religiosa, adquirindo uma desenvoltura de pensar e de proceder, que lhes dá a ilusão da liberdade plena e do pleno domínio da sua vontade. 

Mas ficam-se no simples gozo dessa ilusão. 
 
O que se libertar de Deus, não se liberta da dúvida, nem do preconceito, e muito menos da repressão social que o cerca, cingindo-o, em todos os movimentos, como a própria atmosfera.

 Não fará senão o que os outros quiserem; não dirá senão o que os outros consentirem.

 O seu pensamento, que não encontra a idéia deísta nem o receio futuro a embargar-lhe o vôo, encontra, todavia, como anteparo à sua ampla expansão, na Terra, a conveniência dos homens, a fiscalização da justiça humana, e a organização social da coletividade;

 Dentro destes três fatores de correção, ele vai topar com o obstáculo, frágil ou poderoso, mais sempre bastante, que não só lhe não deixa a ação livre, como lhe não permite a exteriorização do seu pensar, senão nos moldes que a sociedade adotou, como modelos clássicos, a que todos devem obediência.

Há ainda indivíduos que constituem exceção à regra estabelecida? 

Há. 

Além dos iconoclastas, que presumem que da sua ação e das suas idéias há de vir, em súbito cataclismo, o desaparecimento de tudo que os cerca, como de um simples golpe do seu pensamento audaz desapareceu, para eles, o Deus que tanto preocupa os outros, há os criminosos - ou, pelo menos, assim considerados pelas leis sociais - que praticando atos de liberdade plena, como as feras, como elas, são perseguidos e monteados.

 Misturados com esses há ainda a plêiade dos ingênuos e dos simples, que se deixam seduzir por falazes ilusões, e por teorias vazias de senso comum.

Deslumbra-os a novidade, ufana-os o orgulho de se proclamarem livres de alguma coisa, quando, no seu foro íntimo, se reconhecem animais destinados a toda a carga e a toda a prisão, e são conduzidos, como rebanho panúrgico por qualquer charlatão hábil.

     
Sentem necessidade de estadearem uma independência que não têm, porque se subordinam, inconscientemente, ao mais atrabiliário dizedor de teorias arrevesadas e chochas, e ao primeiro sobressalto de remorso caem em si, em genuflexão de terror. 

Proclamam, constantemente, e em altas vozes, a sua independência, o seu livre-arbítrio, a sua vontade libérrima, o seu pensamento desempoeirado de velharias ou de preconceitos, para se darem à embriagadora ilusão de uma realidade que não existe.

São inofensivos. 

Enganaram-se no caminho; mas não têm dificuldade em retroceder.

Sentem sempre grande felicidade na confissão do erro, e põem todo o empenho no propósito da emenda.

Não se enganarão mais; e são, depois, os de passo mais firme, mais serenos, de maior força e mais consciente audácia, no caminhar pela vida além.

 Boas almas, que a tentação desencaminha, mas de que nunca conseguirá fazer coisa ruim.

 Quem tiver o cérebro atreito a trabalho reflexivo, pense no que deixo dito, sem se importar com quem é que o diz.

 O nome, é uma marca; e não se mostra muito assisado quem adquire as coisas pela marca, e não pelo valor que representam.

 Passei aí a vida a compilar fatos para simular história, no propósito leal e honesto de querer orientar os que depois de mim viessem na conquista da verdade, e no desempoeiramento da lenda, que cercava, como pesada nebulosa, muito caráter mau, muito criminoso glorificado.

Se agora volvo à Terra a dizer coisas inusitadas para muitos, é ainda no mesmo propósito leal e honesto de orientar quem, de boa-fé, se deixe arrastar em caminho errado e resvaladiço.

Continuarão aí a admirar os ídolos que ajudei a escavacar? 

A culpa não é minha.    

Continuarão a seguir um caminho errado na fantástica conquista da liberdade contra Deus, por a não poderem conseguir contra os homens, desprezando todos os salutares princípios de correção, de morigeração, de perfectibilidade, que a sua idéia representa ante a organização ferina da individualidade humana?

A culpa também não será minha, porque, com o mesmo propósito altruísta, cumpro o meu dever, vindo proclamar a verdade.  

(Espírito de Joaquim Pedro D’Oliveira Martins - Obra:-
- Do País da Luz 3)

OBSERVAÇÃO DO COMPILADOR:-
- Oliveira Martins (1845-1894) foi notável escritor e político. 

Historiador moderno, arrojado nas suas conclusões, deixou nos seus trabalhos um acentuado cunho da concisão, aliado à intenção judiciosa e justa. 

Cultivou a sociologia, a etnografia, a crítica e o jornalismo, mas foi como historiador e estilista que se consagrou.

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