O
Pensamento é Livre
De há muito que tenho em
sentido vir falar-te e trazer o meu quinhão para a obra singular em que andas
empenhado.
Circunstâncias várias, porém, têm impedido que o tenha podido fazer.
Chegou a oportunidade; e,
visto que chegou, vou aproveitá-la.
Não há grande mérito em
afirmarmos daqui a existência da vida, que aí nos comprazemos negar.
Nem mérito
nem necessidade.
É um fato natural.
Seria
contra-senso esperar o contrário.
Está afirmada pela nossa própria existência.
Ou ela não existiria e nós não viríamos, ou se nós viemos é porque ela existe.
Não perco, pois, tempo a
querer provar o que a minha presença demonstra.
Seria cometer um pleonasmo, e os
pleonasmos estão fora dos meus hábitos.
Sendo assim, como é,
resta-nos só uma coisa a apreciar.
É esta:-
- Porque será que o homem põe tanta
fereza em sustentar a sua não existência além da morte?
Por mim julgarei.
Não deixa de ser
incontroversa verdade que a religião constitui um freio.
Ora, como todas as
religiões, mais ou menos alumiadas pela luz das civilizações, de que são produto
e reflexo, se baseiam, também mais ou menos, na existência de Deus e da alma,
seja qual for a forma por que pretendam justificar estas duas existências,
segue-se que não há religião que não constitua um poderoso elemento para
conduzir o animal humano a certo e determinado fim.
Para o conduzir ou
pretender conduzi-lo, o que não é bem o mesmo.
Se é certo que, de fato, as
religiões são um modo seguro de arrebanhar e domesticar homens, num propósito
salutar de os corrigir e de os amoldar a princípios de filosofia transcendental,
especulativamente perfeita ou tendente à perfeição, não é menos certo que não há
animal mais indomesticável que o homem, mormente quando se lhe mete na cabeça
que é alguma coisa de superior.
Apoiado nesta falaz
superioridade, se sente o freio moral a pretender guiá-lo, para o fazer entrar
na uniformidade passiva de um grande rebanho, sujeito, no redil da obediência, a
um princípio único e a determinações restritivas, reage contra esse freio.
E
como ele é peia de que pelo seu próprio esforço pode libertar-se, conclui-se
pelo ato, excessivamente cômodo, de o suprimir.
Como é mais fácil e mais
tranqüilo viver sem pressões, de que ceder e amoldar-se a elas, ainda que no
fundo da sua consciência as reconheça úteis e profícuas, tem o homem procurado,
desde sempre, destruir tudo quanto sirva de obstáculos ao livre exercício da sua
vontade.
Convenho em que de muito
lhe tem valido, para o seu aperfeiçoamento moral, espiritual e até mesmo
material, esse eterno gérmen de revolta, ingênito em todo cérebro humano; essa
eterna aspiração de liberdade, que acalenta os sonhos do homem e lhe move e rege
o pensamento; mas também não é menos certo que muitas vezes, precipitado no
caminho das reivindicações, quer materiais, quer intelectuais, corre doido,
cego, como cavalo fogoso sem rédea nem governo.
Passa a meta, ultrapassa o
limite razoável onde era justo que parasse, e arremessa-se por despenhadeiros,
indo encontrar o estropiamento ou a morte, onde imaginaria achar a liberdade e a
vida.
As religiões, como coisas
incompreensíveis e maravilhosas ao vulgo, feitas de princípios eternos e
assentes em bases inamovíveis, constituem um estorvo ao libérrimo exercício do
pensamento humano.
Limitam-lhe a zona onde ele pode desenvolver-se, e os
assuntos que podem ser submetidos ao seu justo exame.
Deixam entrever horizontes
infinitos, que constituem o desespero do homem por não os poder alcançar e
explicar.
O revoltado, como os não
pode atingir, relega-os, suprime-os da sua vida.
Suprime-os por efeito da
sua vontade, como por efeito da sua vontade cerra os olhos para poder negar a
luz.
Mas no fim de todo o seu esforço, nem a luz deixou de existir, nem os
princípios que tentou suprimir desapareceram.
E, na maioria, se não na
generalidade dos casos, nem mesmo da sua própria consciência conseguiu a
supressão.
Felizes os modestos e os
conformados, que norteiam o seu viver dentro do âmbito que aquele limite lhes
proporciona!
Se dentro dele guiam a sua
vida pelo farol da justiça e pela bússola da bondade, serão aí iluminados pelo
sol radiante da esperança, acariciados pelo brando calor da tranqüilidade de
espírito, e ao aportarem, no fim da viagem, ao porto desconhecido da morte,
encontrarão a felicidade.
Os outros, os ambiciosos da
liberdade plena, os insubmissos ao respeito, os que farão vogar o seu batel ao
sabor desconcertado do seu pensamento sem governo, não raro darão com ele sobre
os recifes do desespero, e em vez do apetecível descanso final, virão ao
encontro de mágoas e dores, que, pela sua intensidade e pelo pavor do
inesperado, lhes darão a sensação tétrica de uma eternidade de horror.
Não venho fazer confissões
do que se passou comigo.
Basta que enuncie o fato para cada um tirar dele as
ilações que lhe aprouver.
Já não é pequeno favor
falarmos-lhes daqui, prevenindo-os dos perigos, se são incautos; aconselhando-os
se são contumazes ou inexperientes; alumiando-os, se lhes falta luz; ou
guiando-os se forem cegos de entendimento.
Isso faço também.
Para que alguém tire
proveito do que lhe digo, não reconheço vantagem em confidenciar a toda a gente
o que comigo se passou.
Nunca tive o hábito de
aliviar-me, para carregar os outros.
Tirarmos de nós segredos e entregá-los
àqueles que nada têm com eles, é alijarmos responsabilidades e deveres para quem
dessas responsabilidades e desses deveres não têm que fazer-se depositários.
Se nós não sabemos ou não
queremos conservar e guardar o que nos pertence, não temos direito de esperar
que os outros façam melhor uso daquilo em que não têm nenhum interesse.
Sempre pensei e procedi
assim.
No círculo limitado em que
vivi, chamavam-me taciturno e misantropo.
Não era.
Era prudente e
metódico.
Adotava e seguia o processo que me parecia mais consentâneo com o
resultado dos meus estudos sobre os homens e sobre as coisas; e seguindo agora o
processo igual àquele com que me dei aí otimamente, suponho usar de um benefício
conquistado pelo meu trabalho honesto.
Procurei dar sempre aos
outros a impressão nítida da síntese a que o meu espírito chegava, na resultante
da elaboração metódica e regular dos meus raciocínios, naquilo sobre que fazia
incidir o meu estudo.
Podia errar, e muitas vezes errei; mas procurava destacar
um cunho de honestidade e de retidão, o meu modo de ver e de apreciar.
Diligenciei pôr em tudo uma
réstia de luz, que aclarasse o que de natureza própria não era muito claro; e
àquilo que não carecia de muita luz para iluminar-lhe o vulto, procurei pô-lo de
modo que melhor pudesse ser visto e julgado.
Claro é que muitas vezes me
enganei; mas se eu, que buscava ser probo e consciencioso no meu trabalho, me
enganei, o que terá sucedido a tantos que, por imprevidência, descuido ou
maldade, só têm buscado confundir tudo, escurecer tudo.
Apresentava as
conclusões a que chegava.
Era esse o meu fim.
Mostrar os meios, os
argumentos, as induções e deduções, o longo trabalho paciente e extenuante a que
me entregava para chegar a essas conclusões, era supérfluo; e detestei sempre o
supérfluo.
Daqui sigo o mesmo
processo.
Cheguei rapidamente,
logicamente, à conclusão de que o homem faz mal em entregar-se livremente, e de
maneira desordenada, a saborear a ambrosia da ampla liberdade de pensamento, sem
peias nem restrições. Isto digo para aí.
Deve meditar-se que tudo
tem um limite; e nada há que tenha limite mais próximo do que o pensamento
humano, que se crer ser livre como o ar.
Ora em verdade o ar é livre; mas a
coisa mais flexível e diáfana estorva e impede a sua passagem.
Assim, o pensamento é
livre, mas a cada momento, o que proclama a sua liberdade, tem de reconhecer que
as mais ligeiras reflexões tolhem a sua expansão.
A razão, que é o equilíbrio
das faculdades intelectuais coarta-lhe a cada momento os vôos.
É como uma águia
presa por uma corrente a um rochedo.
O pensamento pode
mergulhar-se no infinito.
Tem essa possibilidade; mas é como se mergulharmos
a vista na escuridão.
Olhamos mas não vimos nada.
Ele sobe, profunda, tenta,
mas só consegue saber que cada vez ignora mais.
Nesse infinito vai
reconhecer que o seu limite está adstrito ao pouco em que se constitui o seu
conhecimento.
Espraia-se em conjecturas,
alonga-se em suposições, enriquece-se em hipóteses; mas depois de esforços
sem nome, de tentativas sem conto, chega à triste realidade de que a verdade
conhecida é uma poalha, insignificante conquista do seu trabalho.
A sua ampla liberdade,
liquida, por fim, no reconhecimento de que é uma desconsoladora ilusão.
O
pensamento ilimitado é como a vista na escuridão:-
- Esbarra nas trevas.
Só pode ser livre nos
mentecaptos, nos irrefletidos, nos irresponsáveis.
Quanto mais poderoso e mais
belo é o cérebro em que ele se elabora, maior é a responsabilidade da sua
manifestação, e mais avultadas são as dificuldades que ele tem a vencer para ser
livre.
Deve dar muita volta dentro
da caixa craniana, que lhe serve de receptáculo elaborante, de retorta
purificadora, antes de conquistar o direito à sua expansibilidade fora do ser
que o produziu.
Deve ser como a língua, que deve dar muitas voltas na boca antes
de proferir coisas que desconheça.
Se a prudência aconselha
tão úteis precauções, como há de dar-se-lhe a alforria absoluta?
É verdade que se
estabeleceu que a liberdade de pensamento seja só para a libérrima apreciação da
idéia de Deus.
Está convencionado que os livres pensadores sejam só
negativistas.
Na negação é que reside a
liberdade.
Ora, a negação, em filosofia, é a suprema manifestação do
inexistente, como nas ciências concretas é a suprema manifestação da ignorância.
Sendo a negação - o nada -
a liberdade que essa negação representa eqüivale-se a nada também.
Será desconhecimento, será
preconceito, será orgulho: tudo coisas mesquinhas, de significação restrita e
âmbito acanhado, e nunca a sintetização dessa amplidão infinita, sem raia e sem
obstáculos, que evoca ao nosso espírito a idéia de pensamento livre.
Em tudo que se não
relacione com a idéia de Deus, não há livres pensadores.
Até nesses, a razão
humana força ao reconhecimento de dificuldades, muitas vezes insuperáveis, ao
livre exercício do pensamento.
Tem sempre que amoldar-se, modificar-se, segundo
os assuntos sobre que tem de incidir.
Só os irresponsáveis podem
desconhecer as regras que a necessidade impõe aos homens de são juízo.
Não deixa de ser verdade,
porém, que a irresponsabilidade nem sempre é um triste direito só dos idiotas, é
também, muitas vezes, uma conquista ou um apanágio dos maus ou dos
inconseqüentes.
Se não pretendem usufruí-la
em todos os atos vulgares da vida real e física, como a usufruem nos domínios
inatingíveis da espiritualidade, é porque a sociedade organizou a sua defesa
contra essa espécie de insubmissos, de eternos revoltados, de livres
exploradores da vida, e corrige-os, e tolhe-lhes o amplo exercício de tão
estranhas aspirações, ergastulando-os, e seqüestrando-os ao seu convívio;
limitando-lhes, assim, de um modo para eles muito lamentável, a vastidão sonhada
do seu campo de ação.
Ora, Deus não é como a
sociedade.
Não se defende.
Deixa libérrima a ação ao homem para guiar aí a sua
vida como lhe aprouver.
No amplíssimo uso dessa
liberdade amplíssima, vingam-se contra Ele, dos obstáculos que a sociedade lhes
opõe; e conquistam, com grande entono de ousadia, o direito de se proclamarem
livres.
São livres contra Deus,
como o são contra os espaços siderais; livres, mas presos à pequenez mesquinha
da sua carcaça material; sem que, de fato, se desloquem da Terra onde estão
agrilhoados.
Fazem mal os que assim
procedem.
Esse inconsciente
direito, essa grandiosa conquista da rebelião ignorante, é um mal que cedo
reconhecerão, e de que amargamente pagarão o gozo.
Atiram, de fato, fora o
freio da idéia religiosa, adquirindo uma desenvoltura de pensar e de proceder,
que lhes dá a ilusão da liberdade plena e do pleno domínio da sua vontade.
Mas
ficam-se no simples gozo dessa ilusão.
O que se libertar de Deus,
não se liberta da dúvida, nem do preconceito, e muito menos da repressão social
que o cerca, cingindo-o, em todos os movimentos, como a própria atmosfera.
Não fará senão o que os
outros quiserem; não dirá senão o que os outros consentirem.
O seu pensamento, que não
encontra a idéia deísta nem o receio futuro a embargar-lhe o vôo, encontra,
todavia, como anteparo à sua ampla expansão, na Terra, a conveniência dos
homens, a fiscalização da justiça humana, e a organização social da
coletividade;
Dentro destes três fatores
de correção, ele vai topar com o obstáculo, frágil ou poderoso, mais sempre
bastante, que não só lhe não deixa a ação livre, como lhe não permite a
exteriorização do seu pensar, senão nos moldes que a sociedade adotou, como
modelos clássicos, a que todos devem obediência.
Há ainda indivíduos que
constituem exceção à regra estabelecida?
Há.
Além dos iconoclastas, que presumem
que da sua ação e das suas idéias há de vir, em súbito cataclismo, o
desaparecimento de tudo que os cerca, como de um simples golpe do seu pensamento
audaz desapareceu, para eles, o Deus que tanto preocupa os outros, há os
criminosos - ou, pelo menos, assim considerados pelas leis sociais - que
praticando atos de liberdade plena, como as feras, como elas, são perseguidos e
monteados.
Misturados com esses há
ainda a plêiade dos ingênuos e dos simples, que se deixam seduzir por falazes
ilusões, e por teorias vazias de senso comum.
Deslumbra-os a novidade,
ufana-os o orgulho de se proclamarem livres de alguma coisa, quando, no seu foro
íntimo, se reconhecem animais destinados a toda a carga e a toda a prisão, e são
conduzidos, como rebanho panúrgico por qualquer charlatão hábil.
Sentem necessidade de
estadearem uma independência que não têm, porque se subordinam,
inconscientemente, ao mais atrabiliário dizedor de teorias arrevesadas e
chochas, e ao primeiro sobressalto de remorso caem em si, em genuflexão de
terror.
Proclamam, constantemente, e em altas vozes, a sua independência, o seu
livre-arbítrio, a sua vontade libérrima, o seu pensamento desempoeirado de
velharias ou de preconceitos, para se darem à embriagadora ilusão de uma
realidade que não existe.
São inofensivos.
Enganaram-se no caminho; mas não têm dificuldade em retroceder.
Sentem sempre grande
felicidade na confissão do erro, e põem todo o empenho no propósito da emenda.
Não se enganarão mais; e são, depois, os de passo mais firme, mais serenos, de
maior força e mais consciente audácia, no caminhar pela vida além.
Boas almas, que a tentação
desencaminha, mas de que nunca conseguirá fazer coisa ruim.
Quem tiver o cérebro
atreito a trabalho reflexivo, pense no que deixo dito, sem se importar com quem
é que o diz.
O nome, é uma marca; e não
se mostra muito assisado quem adquire as coisas pela marca, e não pelo valor que
representam.
Passei aí a vida a compilar
fatos para simular história, no propósito leal e honesto de querer orientar os
que depois de mim viessem na conquista da verdade, e no desempoeiramento da
lenda, que cercava, como pesada nebulosa, muito caráter mau, muito criminoso
glorificado.
Se agora volvo à Terra a
dizer coisas inusitadas para muitos, é ainda no mesmo propósito leal e honesto
de orientar quem, de boa-fé, se deixe arrastar em caminho errado e resvaladiço.
Continuarão aí a admirar os
ídolos que ajudei a escavacar?
A culpa não é minha.
Continuarão a seguir um
caminho errado na fantástica conquista da liberdade contra Deus, por a não
poderem conseguir contra os homens, desprezando todos os salutares princípios de
correção, de morigeração, de perfectibilidade, que a sua idéia representa ante a
organização ferina da individualidade humana?
A culpa também não será
minha, porque, com o mesmo propósito altruísta, cumpro o meu dever, vindo
proclamar a verdade.
(Espírito de Joaquim Pedro
D’Oliveira Martins - Obra:-
- Do País da Luz 3)
OBSERVAÇÃO
DO COMPILADOR:-
- Oliveira Martins (1845-1894) foi notável escritor e político.
Historiador
moderno, arrojado nas suas conclusões, deixou nos seus trabalhos um acentuado
cunho da concisão, aliado à intenção judiciosa e justa.
Cultivou a sociologia, a
etnografia, a crítica e o jornalismo, mas foi como historiador e estilista que
se consagrou.