Vejam o desabafo de um grande
pensador!
Coisas da Maturidade
Rubem Alves
Colunista da Folha de S. Paulo
Ganhei Coragem
“Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente
tem coragem para aquilo que ele realmente
conhece“, observou Nietzsche.
É o meu caso.
Muitos pensamentos meus, eu guardei em segredo.
Por medo.
Albert Camus, ledor de Nietzsche,
acrescentou um detalhe acerca da hora quando a
coragem chega:-
- “Só tardiamente ganhamos a
coragem de assumir aquilo que sabemos“.
Tardiamente.
Na velhice.
Como estou velho, ganhei coragem.
Vou dizer
aquilo sobre que me calei:-
- “O povo unido jamais será
vencido“:-
- é disso que eu tenho medo.
Em tempos passados invocava-se o nome de Deus como fundamento da ordem política.
Em tempos passados invocava-se o nome de Deus como fundamento da ordem política.
Mas Deus foi
exilado e o “povo“ tomou o seu lugar:-
- a
democracia é o governo do povo...
Não sei se foi
bom negócio:-
- o fato é que a vontade do povo,
além de não ser confiável, é de uma imensa
mediocridade.
Basta ver os programas de televisão
que o povo prefere.
A Teologia da Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação histórica.
A Teologia da Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação histórica.
Nada mais
distante dos textos bíblicos.
Na Bíblia o povo e
Deus andam sempre em direções opostas.
Bastou
que Moisés, líder, se distraísse, na montanha,
para que o povo, na planície, se entregasse à
adoração de um bezerro de ouro.
Voltando das
alturas Moisés ficou tão furioso que quebrou as
tábuas com os 10 mandamentos.
E há estória do
profeta Oséias, homem apaixonado!
Seu coração se
derretia ao contemplar o rosto da mulher que amava!
Mas
ela tinha outras idéias.
Amava a prostituição.
Pulava
de amante a amante enquanto o amor de Oséias pulava de
perdão a perdão.
Até que ela o abandonou...
Passado muito tempo Oséias perambulava solitário
pelo mercado de escravos...
E que foi que viu?
Viu a sua amada sendo vendida como escrava.
Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse:-
- “Agora você será minha para sempre...“
Pois o
profeta transformou a sua desdita amorosa numa
parábola do amor de Deus.
Deus era o amante
apaixonado.
O povo era a prostituta.
Ele amava a
prostituta.
Mas sabia que ela não era confiável.
O
povo sempre preferia os falsos profetas aos verdadeiros,
porque os falsos profetas lhes contavam mentiras.
As
mentiras são doces.
A verdade é amarga.
Os políticos
romanos sabiam que o povo se enrola com pão e
circo.
No tempo dos romanos o circo era os
cristãos sendo devorados pelos leões.
E como o
povo gostava de ver o sangue e ouvir os gritos!
As coisas mudaram.
Os cristãos, de comida para
os leões, se transformaram em donos do circo.
O
circo cristão era diferente:-
- judeus, bruxas e
hereges sendo queimados em praças públicas.
As praças
ficavam apinhadas com o povo em festa, se alegrando com
o cheiro de churrasco e os gritos.
Reinhold Niebuhr,
teólogo moral protestante, no seu livro O homem moral e a sociedade imoral
observa que os indivíduos, isolados, têm
consciência.
São seres morais. Sentem-se
“responsáveis“ por aquilo que fazem.
Mas quando
passam a pertencer a um grupo, a razão é
silenciada pelas emoções coletivas.
Indivíduos que,
isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma
borboleta, se incorporados a um grupo, tornam-se capazes
dos atos mais cruéis.
Participam de linchamentos, são
capazes de pôr fogo num índio adormecido e de jogar
uma bomba no meio da torcida do time rival.
Indivíduos são seres morais.
Mas o povo não é
moral.
O povo é uma prostituta que se vende a
preço baixo.
Meu amigo Lisâneas Maciel, no meio
de uma campanha eleitoral, me dizia que estava
difícil porque o outro candidato a deputado
comprava os votos do povo por franguinhos da Sadia.
E a democracia se faz com os votos do povo...
Seria
maravilhoso se o povo agisse de forma racional, segundo
a verdade e segundo os interesses da
coletividade.
É sobre esse pressuposto que se
constrói o ideal da democracia.
Mas uma das
características do povo é a facilidade com que
ele é enganado.
O povo é movido pelo poder das
imagens e não pelo poder da razão.
Quem decide
as eleições – e a democracia - são os produtores
de imagens.
Os votos, nas eleições, dizem quem é
o artista que produz as imagens mais sedutoras.
O povo não pensa.
Somente os indivíduos pensam.
Mas o
povo detesta os indivíduos que se recusam a ser
assimilados à coletividade.
Uma coisa é o ideal democrático,
que eu amo.
Outra coisa são as práticas de engano
pelas quais o povo é seduzido.
O povo é a massa de
manobra sobre a qual os espertos trabalham.
Nem
Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo
confiavam no povo.
Jesus Cristo foi crucificado
pelo voto popular, que elegeu Barrabás.
Durante a
Revolução Cultural na China de Mao-Tse-Tung, o
povo queimava violinos em nome da verdade
proletária.
Não sei que outras coisas o povo é
capaz de queimar.
O nazismo era um movimento
popular.
O povo alemão amava o Führer.
O mais famoso
dos automóveis foi criado pelo governo alemão para o
povo:-
- o Volkswagen.
Volk, em alemão, quer dizer “povo“...
O povo unido jamais será vencido!
O povo unido jamais será vencido!
Tenho vários
gostos que não são populares.
Alguns já me
acusaram de gostos aristocráticos...
Mas, que
posso fazer?
Gosto de Bach, de Brahms, de
Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de
silêncio, não gosto de churrasco, não gosto de
rock, não gosto de música sertaneja, não gosto
de futebol (tive a desgraça de viajar por duas
vezes, de avião, com um time de futebol...).
Tenho medo
de que, num eventual triunfo do gosto do povo, eu venha
a ser obrigado a queimar os meus gostos e engolir sapos
e a brincar de “boca-de-forno“, à semelhança do
que aconteceu na China.
De vez em quando, raramente, o povo fica bonito.
De vez em quando, raramente, o povo fica bonito.
Mas, para que esse acontecimento raro
aconteça é preciso que um poeta entoe uma canção
e o povo escute:-
- “Caminhando e cantando e
seguindo a canção...“
Isso é tarefa para os
artistas e educadores:-
- O povo que amo não é uma
realidade.
É uma esperança.
Folha de S. Paulo
05/05/2002
Fonte:- A Casa de Rubem Alves
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