Novel, depoimento de Espírito Sofredor após desencarne
Livro O Céu e o Inferno
Allan Kardec
1865
O Céu e o Inferno
Espíritos Sofredores
O Espírito dirige-se ao médium, que em vida o conhecera.
“Vou contar-te o meu sofrimento quando morri.
Meu Espírito, preso ao corpo
por elos materiais, teve grande dificuldade em desembaraçar-se — o que
já foi, por si, uma rude angústia.
A vida que eu deixava aos 21 anos era
ainda tão vigorosa que eu não podia crer na sua perda.
Por isso
procurava o corpo, estava admirado, apavorado por me ver perdido num
turbilhão de sombras.
Por fim, a consciência do meu estado e a
revelação das faltas cometidas, em todas as minhas encarnações,
feriram-me subitamente, enquanto uma luz implacável me iluminava os mais
secretos âmagos da alma, que se sentia desnudada e logo possuída de
vergonha acabrunhante.
Procurava fugir a essa influência interessando-me pelos objetos que me cercavam, novos, mas que, no entanto, já conhecia;
os Espíritos luminosos, flutuando no éter, davam-me a idéia de uma
ventura a que eu não podia aspirar; formas sombrias e desoladas,
mergulhadas umas em tedioso desespero; furiosas ou irônicas outras,
deslizavam em torno de mim ou por sobre a terra a que me chumbava.
Eu via agitarem-se os humanos cuja ignorância invejava; toda uma ordem de sensações desconhecidas, ou antes reencontradas, invadiram-me simultaneamente.
Como que arrastado por força
irresistível, procurando fugir à dor encarniçada, franqueava as
distâncias, os elementos, os obstáculos materiais, sem que as belezas
naturais nem os esplendores celestes pudessem calmar um instante a dor
acerba da consciência, nem o pavor causado pela revelação da eternidade.
Pode um mortal prejulgar as torturas
materiais pelos arrepios da carne; mas as vossas frágeis dores,
amenizadas pela esperança, atenuadas por distrações ou mortas pelo
esquecimento, não vos darão nunca a ideia das angústias de uma alma que
sofre sem tréguas, sem esperança, sem arrependimento.
Decorrido um tempo cuja duração não
posso precisar, invejando os eleitos cujos esplendores entrevia,
detestando os maus Espíritos que me perseguiam com remoques, desprezando
os humanos cujas torpezas eu via, passei de profundo abatimento a uma
revolta insensata.
Chamaste-me finalmente, e pela primeira
vez um sentimento suave e terno me acalmou; escutei os ensinos que te
dão os teus guias, a verdade impôs-se-me, orei; Deus ouviu-me,
revelou-se-me por sua Clemência, como já se me havia revelado por sua
Justiça.
Novel.”
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